18 de janeiro de 2012

Cineasta chileno revisita 200 anos de história da “libertação” da América Latina

Após seis anos de pesquisa histórica e entrevistas com pelo menos 60 pessoas entre intelectuais, historiadores, filósofos, chefes de Estado, lideranças políticas e sociais, para saber sobre as mazelas e os temas ainda pendentes para o desenvolvimento da América Latina, o cineasta chileno Luís Vera percorreu muitos dos 20 países da região para documentar a “Independência Inconclusa”.

Co-produzido por México, El Salvador, Paraguai, Equador, Colômbia,  Venezuela, Cuba e Chile, o documentário de 188 minutos propõe uma revisão crítica e reflexiva aos 200 anos de história independente da região.
“Eu me pergunto: mas o que vamos celebrar? Eu questiono o conceito desta celebração e me proponho a investigar quais são os grandes assuntos pendentes que temos nesta recordação, o sonho dos libertadores de uma pátria única que seria a América, mas que nunca foi”, disse ao Opera Mundi Luís Vera em uma breve passagem pelo Brasil. “Independência Inconclusa” já foi exibido em festivais internacionais de cinema como o de Havana, em Cuba, e também na Colômbia, Venezuela, Suécia, Bélgica, Argentina. Em 2011, encerrou o Cinesul – Festival Iberoamericano de Cinema e Vídeo, no Rio de Janeiro. O documentário já foi exibido em salas de cinema em Barcelona, Bruxelas, Estocolmo e Paris e se prepara para ser lançado na Itália, no País Basco, Andalucía e Galícia, na Espanha.
A independência da região, define Vera, é um “sonho frustrado”, tendo sido um processo “tremendamente complexo e doloroso, com esperanças e muitas delas frustradas”, discute o cineasta. Em sua narrativa visual, Vera se lança ao desafio de atravessar 200 anos de história e fazer o resgate da identidade a fim de ampliar a discussão para o futuro.

“A intenção toda é fazer um filme sobre o futuro e não apenas sobre o passado. A região continua lutando pela sua independência que ainda não está concluída. Ela será plena na medida que sejamos capazes de recuperar a soberania e a independência sobre temas econômicos, políticos, judiciais e das tecnologias. O domínio das ideias é a grande batalha do conhecimento tecnológico e não podemos ficar atrás”, argumenta Luís Vera.
Para o documentarista engajado na compreensão histórica da realidade social da América Latina e seus desafios, a região ainda enfrenta grandes bolsões de pobreza com milhares de pessoas sem acesso a serviços de educação, saúde e moradia.
“Em geral, as condições de trabalho são de má remuneração, baixa qualificação e de super exploração. A acumulação de riqueza e de poder econômico continua sendo forte, assim como a repartição de riqueza segue sendo desigual”, argumenta.

Diálogo da América
Com um projeto de documentário orçado em US$ 500 mil e financiado por fundos das comissões de comemorações ao bicentenário dos países latinoamericanos em 2010, Luís Vera percorre com sua câmera os grandes eventos históricos e transforma o filme num grande diálogo da América.
Participam das conversas e entrevistas um casting de personagens com diferentes pontos de vista como o escritor uruguaio Eduardo Galeano; o presidente da Bolívia, Evo Morales; o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; o escritor mexicano Carlos Fuentes; o presidente do Paraguai, Fernando Lugo; a escritora e jornalista chilena Isabel Allende; João Pedro Stédile, líder do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no Brasil; e Rigoberta Menchú, indígena da Guatemala Prêmio Nobel da Paz de 1992. “São visões cruzadas e diversas sobre a história que revisam o presente para poder projetar, no futuro, a América Latina como uma região com um importante papel no mundo. A independência inconclusa representa um olhar de reflexão crítica da história para a região se projetar neste mundo”, analisa.
Segundo Luís Vera, a história contada em seu documentário não é a oficial. “É a contínua e reiteração de frustrações dos nossos processos de desenvolvimento que tem os grandes superpoderes transnacionais como um freio ao desenvolvimento dos nossos países desde 1800 até hoje. Falo também quais foram os grandes entraves e conflitos internos a partir daqueles que detem o poder e que permanentemente impõem obstáculos à nossa possibilidade de desenvolvimento independente, soberano, democrático, justo e de desenvolvimento humano”.

Confira a seguir a entrevista com o cineasta Luís Vera
Luís Vera em Nova York, durante gravação de outro dos seus documentários.

Como surgiu a ideia do documentário “Independência Inconclusa”?
Há cerca de oito anos, no Chile, fui convidado para um comitê que estava se formando para preparar a celebração do bicentenário da independência chilena  dos espanhóis, ocorrida em 1810. Outros países da América Latina como México, Colômbia, Paraguai, El Salvador, Argentina e Equador também iriam relembrar os 200 anos da emancipação. Mas reagi e questionei que celebração seria aquela. Este fato foi a gênese, o nascimento da ideia original da “Independência Inconclusa” que se tornaria um filme anos depois. No documentário, eu volto no tempo e abarco os 200 anos, mas não o faço do ponto de vista cronológico. Incorporo uma dimensão estética e ética e faço um jogo permanente com a ruptura de tempo e espaço.

Quais entraves a América Latina teve para o seu desenvolvimento? Quais são os pontos que, na sua opinião, não nos deixam celebrar a real independência latino-americana?
Reconhecemos que houve uma independência administrativa no interior das nossas fronteiras e sociedades. São 200 anos de reiterada tomada e manutenção do poder por parte de uma classe dominante minoritária. Essa forma de administrar nossos países tem sido permanentemente dependente e é aí onde se perde a independência. Para poder se relacionar com o mundo, nossos países tiveram que comercializar seus produtos, entrar  num circuito universal econômico e sempre levamos a pior. Durante séculos, fomos os países monocultores de matérias primas, fomos os países que abasteceram para que fossem manufaturados e os produtos voltassem a ser vendidos a preços que significaram o endividamento crônico dos países.
Isso traz, como consequência, a dependência política em relação às superpotências. No século 19 foram a Inglaterra, a Alemanha e a França. Logo a partir do século 20, foram os Estados Unidos que tomaram o controle cada vez mais presente numa América Latina abandonada pelos conflitos internos europeus. Os EUA ocupam o espaço nas mais diversas formas de invasão com tropas, como na América Central, em Cuba e nos territórios mexicanos. Uma invasão física, geográfica e também de riquezas, como no Texas, Novo México e Arizona, que têm jazidas de matérias primas e petróleo. Era um anúncio de que os EUA não iriam tolerar a independência da América Latina e, que o seu vizinho mais próximo, o México, teria que ser invadido e ocupado.

Quais problemas se perpetuam ainda hoje em dia nos países da região?
Penso que a grande proposta é resolver nossos problemas de forma conjunta. Os grandes problemas hoje são a pobreza e a extrema miséria. Temos que descobrir as possibilidades de desenvolvimento real de nossas economias a partir das nossas próprias experiências e não da importação de modelos alheios aos nossos. Nunca nos foi permitido ter uma opção própria de modelo de desenvolvimento, sempre foi o modelo francês, alemão, espanhol ou norte-americano.
Ainda arrastamos os grandes problemas de extrema pobreza, exclusão, marginalização e de convulsão social. Arrastamos uma dívida social enorme que se acumula e de  endividamento progressivo de nossos povos. Nossos países hoje não são mais democráticos do que foram porque a representação é cada vez menor. Temos que recuperar em primeiro lugar as propostas que estavam no sonho dos libertadores: sermos donos soberanos de nossas próprias riquezas.

Como vê a presença brasileira de destaque na América Latina?
O Brasil é um país antes e outro depois de Lula. Esse fenômeno ocorre graças à capacidade de um povo entender que, através de mecanismos da participação política e da democratização, conseguiu avançar e fez com que o Brasil tivesse uma experiência diferente em relação ao que tinha antes. A UNASUL não teria sido possível sem a presença do Brasil, a cúpula iberoamericana sem a presença dos EUA não seria possível sem o Brasil.
O Brasil desempenha uma papel importante, não acredito que queira se impor sobre a América Latina. Há acusações injustas para criar divisões entre os países. Há 20 anos, o Brasil era mais um país do pátio traseiro, do terceiro mundo, e hoje é uma potência. Nós na América Latina temos que estar muito orgulhosos que o Brasil seja uma potência. Historicamente, ele deu as costas para a região. Nós vivíamos de costas um para o outro. O retorno aos países latinoamericanos decorre nos processos democráticos pós-ditadura no Brasil e logo com a participação de Lula que estabelece uma ponte de comunicação. Esta relação já não volta atrás, pois houve uma descoberta identitária e de familiaridade natural. Hoje estamos num cenário muito propício e esperançoso apesar das grandes dificuldades que temos do ponto de vista econômico e social.

Quais são os grandes temas pendentes ainda na América Latina?
Um tema maior de fundamental importância é a participação dos cidadãos nas grandes decisões. Acredito que há grandes temas que são comuns e temos que resolver urgentemente, como o câncer do narcotráfico. É algo que corrompe gravemente as instituições de todo tipo na região e é um problema absolutamente transversal a toda América Latina e atravessa desde o Canadá até a Patagônia, não há inocência.

Artigo divulgado por Opera Mundi

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